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O jazz experimental de Joni Mitchell

A renomada cantora canadense, que completa 80 em 2023, ficou conhecida por suas canções folk e sua entrega completa ao gênero, mas sua fase jazz continua como uma joia oculta.

Quando falamos em Joni Mitchell, automaticamente nos vêm em mente a imagem da cantora que encantou milhões de pessoas com seu violão e suas letras altamente pessoais. Hits atemporais como “Big Yellow Taxi” e “Woodstock” definiram toda uma geração e inspiraram compositores e compositoras do mundo inteiro. Apesar de todo esse sucesso, pouco se fala sobre uma de suas fases mais experimentais, quando a cantautora canadense se juntou a nomes como Pat Metheny, Jaco Pastorius, Charles Mingus e Herbie Hancock na segunda metade dos anos 1970 e criou alguns dos discos mais inventivos de sua época, mesmo que eles nem sempre tenham sido um sucesso de público e crítica.

Como toda boa história na música, a relação entre Joni e o jazz começou a tomar forma depois do lançamento de um grande disco, no caso dela, o seu emblemático Blue. O inesperado sucesso de uma cantora que estava desiludida com a indústria da música fez com que Joni voltasse a se interessar por fazer shows e a buscar parcerias, levando ao seu próximo lançamento em 1972, For the Roses. Seu quinto álbum de estúdio incluiu as faixas “Cold Blue Steel and Sweet Fire” e “Barangrill”, canções que mesclavam seu característico estilo folk com os solos de Tom Scott, músico estadunidense que viria a acompanhá-la nos anos seguintes e a também fazer parte da banda The Blues Brothers (sim, ele é um dos saxofonistas da icônica “Soul Man”).

1973 foi o primeiro ano em que Joni Mitchell não lançou um disco desde a sua estreia em 1968, e por uma boa razão. A cantora queria um pouco mais de tempo para se dedicar a suas composições e explorar um novo estilo: o jazz. A cantora convidou o grupo de Tom Scott, o L.A. Express, para acompanhá-la, além de participações especiais de nomes como David Crosby e Graham Nash (e uma inusitada aparição do duo Cheech & Chong). O resultado foi o Court and Spark, de 1974, um dos seus álbuns mais aclamados pela crítica e público. O LP gerou um disco duplo de platina para a cantora, destacando-se faixas como “Help Me”, com um claro apelo jazzístico um pouco mais abstrato, uma novidade na carreira de Joni. Court and Spark gerou a ela 4 indicações ao Grammy, incluindo Álbum do Ano (o qual ela foi a única mulher indicada), mas ela acabou levando o prêmio de Melhor Arranjo Instrumental e Vocal.

Com o lançamento desse disco, Joni Mitchell organizou sua primeira turnê da vida com uma banda de apoio, explorando os Estados Unidos e Canadá com o L.A. Express. Com críticas sempre positivas, uma série de shows feitos em Los Angeles viraram um álbum ao vivo, Miles of Aisles, que registra bem a sonoridade da cantora nessa época. O LP performou tão bem quanto o Court and Spark, onde destaca-se a versão jazz fusion do seu clássico “Big Yellow Taxi”, que foi lançada como single.

Durante essa turnê, Joni continuou a compor e a explorar essas sonoridades abstratas com as quais vinha trabalhando com o L.A. Express. Foi assim que nasceu o pouco convencional The Hissing of Summer Lawns, em 1975. O disco trata de assuntos como frustrações de uma vida suburbana, além da experiência de mulheres que romperam com algumas normas do patriarcado, tudo sob uma roupagem avant-garde e moderna - esse foi o primeiro disco da cantora com a presença de sintetizadores. O álbum recebeu duras críticas na época de seu lançamento, com a imprensa afirmando que “a poesia é boa, mas a música é pouco inspirada”. Com o passar dos anos, The Hissing of Summer Lawns passou a ser melhor visto, angariando fãs como o músico Prince. Joni mais uma vez foi indicada ao Grammy de Melhor Performance Pop Vocal Feminina em 1977, mas perdeu para Linda Ronstadt.

Seu álbum seguinte, Hejira, nasceu a partir de uma série de experiências que vivia em sua vida naquele momento. Suas viagens com Bob Dylan em turnê, seu relacionamento fracassado com o seu marido (e baterista de sua banda) John Guerin, suas longas e solitárias viagens de carro pelos Estados Unidos, além de um recém adquirido gosto pela cocaína, são atribuídas pela cantora como algumas das razões pela sonoridade mais livre e da poesia mais densa de seu disco de 1976. O encontro entre Mitchell e Jaco Pastorius também foi um divisor de águas para o Hejira, já que o som do baixo fretless do músico e o violão da canadense foram os principais fios condutores do LP, que não vendeu tão bem quanto seus predecessores, mas é citado por artistas contemporâneas como Danielle Haim, Weyes Blood e St. Vincent como um de seus prediletos. Joni Mitchell afirmou em 2006 que, “muitas das minhas canções poderiam ter sido escritas por outras pessoas, mas somente eu poderia ter feito o Hejira”.

Satisfeitos com essa nova parceria, Jaco Pastorius chamou então o restante de seu grupo da época para acompanhar a cantora, o Weather Report, marcando a separação de Joni Mitchell do grupo L.A. Express (a exceção de John Guerin, que continuou nas baquetas). Don Juan’s Reckless Daughter, de 1977, ficou conhecido pelo seu estilo inusitado e pelo caráter altamente experimental, que inclui faixas como “Paprika Plains”, com 16 minutos de duração. Além disso, Joni apostou fortemente na percussão de Don Alias e do brasileiro Airto Moreira em faixas como “Dreamland” e “The Tenth World” (que também incluem o backing vocal de uma tal cantora chamada Chaka Khan). O disco recebeu críticas mistas na época, além de ter vendido ainda menos que seus predecessores.

Sua música nessa altura pouco se assemelhava ao folk que tornou a cantora conhecida nos círculos universitários da Califórnia. Talvez por isso que em 1978 Joni foi contatada pela lenda do jazz Charles Mingus, que queria fazer um disco com ela. Mingus chegou a escrever algumas peças para a canadense, que por sua vez escreveu as letras, além dela ter escrito o texto do standard “Goodbye Pork Pie Hat”. O que ninguém sabia é que aquele seria o último trabalho do baixista, que veio a falecer em janeiro de 1979, 6 meses antes do lançamento do disco Mingus, que acabou virando um tributo à vida do músico. Mitchell foi acompanhada de Jaco Pastorius (baixo), Herbie Hancock (teclados), Wayne Shorter (saxofone), Peter Erskine (bateria - o primeiro disco sem o ex marido John Guerin desde o Court and Spark) e Don Alias (percussão). Mais uma vez, o LP gerou resenhas mistas na época por parte da crítica especializada.

O “canto do cisne” de sua fase jazzista foi o disco ao vivo Shadows and Light, lançado em 1980. Acompanhada por um elenco estelar que incluía nomes como Pat Metheny (guitarra), Lyle Mays (teclados), Jaco Pastorius (baixo), Don Alias (bateria) e Michael Brecker (saxofone), o registro foi gravado a partir de uma série de shows feitos em Santa Monica, na Califórnia. As reviews dessa vez foram positivas, com críticas da época exaltando as performances vívidas e triunfantes da cantora e da banda.

Com a chegada dos anos 1980, Joni Mitchell foi contratada pela recém fundada Geffen Records, marcando o fim da experimentação jazz da cantora e um retorno às suas raízes pop. Seu disco Wild Things Run Fast, de 1982, já se mostra um registro do seu tempo, com sua sonoridade oitentista e seu hit “Chinese Café / Unchained Melody”.

Parte do não-tão-grande sucesso comercial de sua fase jazzista provavelmente está atrelada a um sentimento de “traição” por parte de um público fã do seu lado folk. A cantora, em apenas 5 anos, seguiu um caminho musical irreconhecível para quem ouvia seus primeiros trabalhos, o que soava aparentemente sem razão para o ouvinte que estava acostumado ao som do seu violão. Além disso, Joni encontrava dificuldades em ser tachada como uma musicista de jazz por conta de sua relação histórica com o folk, ao mesmo tempo que não conseguia tanto espaço nos círculos do folk devido a sua nova sonoridade experimental.

Apesar dos pesares, hoje Joni é creditada como uma das principais difusoras do gênero jazz-fusion que se tornou cada vez mais popular nos anos seguintes com nomes como John McLaughlin e Herbie Hancock. Hoje também há uma tendência da nova geração a revisitar esse período com um olhar mais generoso, de uma artista que buscava expandir seus horizontes sonoros em um momento de maior estagnação do folk após o seu ápice nos anos 1960. O fato é que Joni Mitchell sempre esteve à frente de seu tempo, e hoje, aos 80 anos de idade, é tratada como um dos mais importantes e influentes nomes da história da música popular, inspirando cantores e cantoras de todo o mundo a buscar sonoridades cada vez mais arrojadas e desafiadoras.