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Benedito, nego dito, maldito: a vida de Itamar Assumpção

A vida e a obra do compositor paulista Itamar Assumpção, cuja morte completa 20 anos em 2023.

Quem frequentou o bairro de Pinheiros, em São Paulo, na década de 1980, certamente se deparou em algum momento com a inusitada figura de um homem negro, alto, com vestes coloridas e um peixe na mão desfilando pela praça Benedito Calixto. Mais ainda, quem ficava curioso com o burburinho que acontecia na frente daquele depósito de ferragens com uma fachada vermelha pintada a mão escrita “Lira Paulistana”, com certeza viu alguma apresentação desse homem, aqui se apresentando como “Nego Dito” e sua banda Isca de Polícia.

Francisco José Itamar de Assumpção nasceu em Tietê, no interior de São Paulo, em 1949, onde viveu com sua avó até os 12 anos. Bisneto de escravizados angolanos, o jovem cresceu em meio aos terreiros de candomblé da cidade e o batuque de umbigada, manifestação cultural afro-brasileira muito comum no interior de São Paulo. Foi sob essas influências, junto à descoberta de Jimi Hendrix, que Itamar começou a aprender a tocar violão sozinho na adolescência, quando passou a morar com seus pais em Arapongas, próximo a Londrina, no Paraná.

Foi nessa cidade que o jovem Ita começou a se aventurar nas artes, fazendo parte do grupo de teatro local, e onde também conheceu os irmãos Arrigo e Paulo Barnabé, que se tornaram parceiros musicais no futuro. Foi também onde ficou preso por 5 dias aos 23 anos de idade quando esperava um ônibus na rodoviária com uma mala e um toca-fitas na mão. Itamar teria ficado preso em um cubículo com outras 15 pessoas, onde ficava de cócoras por não ter espaço para se levantar. Se muda para São Paulo pouco depois de sair de lá, e utiliza essa experiência como inspiração para o nome de sua primeira banda: Isca de Polícia.

A cidade de São Paulo deixa uma profunda marca no compositor, em que o mesmo afirmava que a cidade “É outra coisa. Não é exatamente amor, é identificação absoluta”. Viveu inicialmente numa república com Paulo e Arrigo Barnabé, mas poucos anos depois se casou com Elizena Brigo e foi morar com ela no bairro da Penha, na zona leste da capital paulista. Foi pouco depois do nascimento de sua primeira filha, Serena, em 1977, que Itamar começou a se filiar aos movimentos artísticos que vinham acontecendo no bairro de Pinheiros. Em 1979, é inaugurado o teatro Lira Paulistana, um porão que nasce de um depósito de ferramentas e deu luz ao movimento Vanguarda Paulista (ou Paulistana), que além dele, foi encabeçado por Arrigo, Tetê Espíndola, Ná Ozzetti e diversas outras pessoas.

Em 1980, mesmo ano em que nasce sua filha Anelis, Itamar lança seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, pelo selo Lira Paulistana. O disco é uma síntese do que era o cantor: experimentalismo sonoro, intersecção entre o visual e o musical, performances marcadas pela teatralidade, letras complexas e extenso uso de coros, funcionando como naipes de sopro. Foi também nesse LP que Itamar criou o personagem do Nego Dito, na canção de mesmo nome que foi imortalizada na versão samba rock de Branca Di Neve, em 1987.

O restante da década de 1980 é bastante agitada para Itamar. Em 1981, sai o Às Próprias Custas S.A. pelo selo ISCA, criado e custeado pelo próprio cantor (como indica o nome) e gravado a partir de uma série de apresentações na FUNARTE de SP. O Sampa Midnight, seu terceiro álbum, vem em 1985 a partir de seus encontros com os poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz, que influenciaram profundamente o trabalho de Itamar. Já em 1988, é a vez de Tetê e Alzira Espíndola colaborarem com o compositor no disco Intercontinental! Quem Diria! Era Só o Que Faltava!, seu primeiro e único disco em vida lançado por uma gravadora fora do círculo independente, a Continental. O cantor ainda encontrou tempo nesse mesmo ano para ir à Alemanha com sua banda para se apresentar num circuito de arte contemporânea em cidades como Berlim, Hamburgo, Bremen e outras para sucesso de crítica, que chamou sua música de “um aperfeiçoamento pós- industrial da tradição musical africana”.

Os anos 1990 foram marcados por sua parceria com mulheres. No disco Todas as Mulheres do Mundo, de 1993, Rita Lee grava a canção Tudo Azul, de Itamar, e entra no hall das comparsas musicais do cantor junto a nomes como Vera Motta e as Orquídeas do Brasil. As Orquídeas foi uma banda formada somente por mulheres, idealizada por Itamar, e com elas lança a trilogia Bicho de Sete Cabeças, em 1994. Nessa fase, Itamar passa a chamar a atenção pelos seus óculos escuros e pelo seu figurino influenciado pelo afrofuturismo. Ele e sua esposa eram quem idealizavam e costuravam essas roupas.

Nos anos seguintes, Itamar lança os discos Ataulfo Alves - Pra Sempre Agora (1995) e o Pretobrás I - Por Que Eu Não Pensei Nisso Antes? (1998), o primeiro do que viria a se tornar uma trilogia. O primeiro registro é uma série de releituras da obra do sambista mineiro, fruto de um processo de pesquisa que durou três anos. O segundo trouxe a ele o prêmio de melhor compositor da APCA, Associação Paulista de Críticos de Arte.

Em 2002, já batalhando contra um câncer, Itamar realiza um show histórico com Elke Maravilha, em que se destaca a apresentação da canção Dor Elegante, em que Elke interpreta a morte. Como num ato de premonição, Itamar vem a falecer no ano seguinte, vitimado por um câncer de intestino com o qual convivia a 4 anos. O disco Vasconcelos e Assumpção - Isso Vai Dar Repercussão, em parceria com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, é lançado no ano seguinte. Em 2010, o selo Sesc relança toda a obra do compositor, incluindo dois discos inéditos: Pretobrás II - Maldito Vírgula e Pretobrás III - Devia Ser Proibido, fechando a trilogia Pretobrás.

A obra de Itamar Assumpção é rica e particular, poucos foram os artistas no mundo que foram tão resolutos com seu trabalho e se expressavam com tamanha personalidade. A abordagem de Itamar para a vanguarda era negra, trazendo suas vivências de homem do interior na capital enquanto combatia o racismo da indústria cultural de frente, às vezes sofrendo com algumas consequências. Nego Dito era um caos organizado, tal qual a cidade que aprendeu a amar e resistiu às pressões da indústria sob a ótica de que sua obra é imaculada: para ele era muito importante fugir dos estereótipos aguardados por artistas negros na música brasileira. Um ser indignado, foi a gênese do que hoje entendemos como “artista independente” no Brasil.

Talvez por isso ele tenha recebido a alcunha de “maldito”, que ele tanto rechaçava. Seu legado musical vive na influência que ele deixou na música atual, em artistas como Jadsa e o grupo Metá Metá, além de suas filhas Anelis e Serena Assumpção (falecida em 2016, também vítima de câncer). O poeta curitibano Paulo Leminski uma vez disse que “um homem com uma dor é muito mais elegante”, e talvez por isso que somente Itamar Assumpção poderia desfilar pela Benedito Calixto com óculos escuros, roupas coloridas, um peixe na mão e ainda assim exalar elegância.